O dia 29 de outubro, escolhido para homenagear o livro no Brasil, marca a abertura da Biblioteca Nacional, em 1810. Livre e grátis, merece a visita no site (www.bn.br) e no Rio.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
terça-feira, 14 de outubro de 2014
Nariz vermelho no sertão de Quijngue (BA)
Inaugurada em 23 de julho de 2014, a Biblioteca Comunitária de
Lagoa da Barra localiza-se na área rural de Quijingue, próxima a Canudos de
Antônio Conselheiro e distante 362 km de Salvador. Segundo o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), esse município apresenta o segundo
pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado da Bahia. A iniciativa de
leitura partiu da sul-coreana Jeong Amanda Lee, voluntária da ONG Humanas do
Brasil, preocupada com as reduzidas opções de lazer e perspectivas da infância no
povoado. Sem recursos para montar o acervo, contou com a liderança em São Paulo
de Lincoln Paiva, fundador do Instituto Mobilidade Verde, para coordenar
doações, metodologia e parcerias com a Fundação Pedro Calmon (Governo da Bahia),
Translig/Bicicloteca e a Prefeitura quijinguense, entre outros.
Visitei a catinga para acompanhar a entrega
e novo uso do imóvel que antes abrigava uma unidade do Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil (PETI), ligado ao Ministério do Trabalho e Emprego. Segundo
o IBGE, o Brasil ainda tem 3,7 milhões de crianças e jovens de 5 a 17 anos
envolvidos em atividades domésticas, informais (urbana ou rural), ilícitas ou
de exploração sexual (G1, 2013).
O primeiro dia, véspera da abertura, serviu para conhecer a zona
urbana da cidade, a escola no campo, o prédio recém-reformado do PETI, as equipes
envolvidas na montagem do acervo de mais de 2.000 obras e habitantes da
comunidade.
A manhã seguinte foi dedicada a ouvir as crianças e conhecer seus
hábitos, repertório e imaginário, ainda sem estar caracterizado como palhaço. Por
meio de jogos teatrais para ativar a conexão entre pessoas (“mãe da rua” e “roda
de zap”) descobriu que, além do desejo quase unânime de videogame entre as crianças de seis e nove anos, havia também o
interesse em jogos de palavras com piadas e charadas. Na parte da tarde, vesti meu figurino e coloquei nariz vermelho para realizar uma intervenção na forma de cortejo. Andei da
escola até o “novo” prédio para comunicar a mudança de nome do edifício “garrafa pet” (paródia criada com a sigla PETI) para “Biblioteca de Lagoa da
Barra”. Na ocasião, decidi usar como instrumento um peixe de pano, atado a uma
vara de pescar, chamariz e metonímia ridícula
para homenagear o nome do povoado. Na outra mão, um livro de piadas e charadas a
ser doado ao fim da caminhada. Ainda como clown, participei em seguida de atividades
como “desenhe seus desejos no papel”, comi doces distribuídos na abertura pela
bibliotecária e falei sobre as novas instalações em uma cerimônia organizada
pela sociedade local.
O período da noite serviu para observação, já sem a menor máscara
do mundo, dos festejos e apresentações locais, como quadrilha e forró, além da
participação em um culto religioso. O pastor João Batista, ex-guerrilheiro
paulista reconhecidamente perseguido pela ditadura de 1964, agradeceu aos
envolvidos no projeto, legitimou a “boa nova” e passou a palavra aos moradores
e visitantes, antes de completar a cerimônia. Neste caso, Sérgio Miceli comenta
a necessidade levar em conta o que concorre com o tempo do “consumidor de
cultura” e a prática religião representa
ponto importante de mediação social, atividade cultural e potencial aliado na
transformação social.
Ainda não houve tempo para afirmar que houve alteração efetiva
de hábitos de leitura em Lagoa da Barra, porém, em relação à implantação de projeto
cultural com apoio de palhaço, a descoberta do estudo foi a adesão facilitada
às atividades propostas pelo autor, respeito pelo clown e seus adereços - o
peixe de pano acabou integrado à entrada
da Biblioteca. A receptividade foi duradoura, fui saudado por adultos
e abordado por crianças mesmo horas após a retirada da própria maquiagem.
(..)
Pelo caráter transgressor, o profissional da bobagem tem condições
de complementar o ensino, oferecendo contrapontos à autoridade pedagógica, leituras
obrigatórias e programas escolares. Seus efeitos indutores geram subsídios para
a abertura de novos espaços de diálogo e reflexão, com vistas a diminuir as
distâncias informacionais e ampliar repertórios. Obras ativadas com humor, em vários
graus de leveza, crítica e subversão, evidenciam limites psicológicos e
sociais, criam novos sentidos a quem assiste e/ou participa das apresentações
lúdicas.
As maiores colaborações se encontram em facilitar,
de modo simples, o contato das histórias impressas com os saberes existentes e
também os criados no momento do encontro, por meio de escuta sem cerimônia,
fetiche ou barreiras de espaços tradicionais, catalisando a imaginação e a fantasia
com autonomia, respeito e responsabilidade. Em princípio, assim como o riso, as
escolhas afetivas de leitura não se impõem ao respeitável público.
Fernando Carril
contato@bibliocirco.com.br
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